O corpo como afirmação é o mote do documentário ‘Bombadeira’
FONTE: http://oglobo.globo.com/cultura/o-corpo-como-afirmacao-o-mote-do-documentario-bombadeira-4179790
RIO - A transformação do corpo como forma de afirmação da sexualidade dos travestis é o mote do documentário "Bombadeira - A dor da beleza", longa de estréia do diretor baiano Luis Carlos de Alencar. Ele parte da figura da "bombadeira", profissional conhecida por "transformar" o corpo de suas pacientes com aplicações clandestinas de silicone, para mostrar um lado pouco explorado de um dos grupos mais marginalizados da sociedade.
- A mídia sempre mostra os travestis em dois ambientes: ou na pista ou na boate. Eu quis dar visibilidade a outros espaços, buscar lugares onde geralmente ninguém entra. Busquei uma imagem mais próxima da intimidade. Queria mostrar a questão do corpo e do acesso à saude - explica o diretor.
A história da bombadeira é apenas um pretexto para um desenrolar instigante de relatos em primeira pessoa de travestis da periferia de Salvador. Para eles, colocar silicone significa bem mais do que ficar "bonita", é uma forma de afirmar sua feminilidade, e isso vem em primeiro lugar, mesmo com os riscos que envolvem uma cirurgia clandestina. Andrezza, que trabalha em uma ONG na cidade, é uma das personagens retratadas.
- Eu modelei meu corpo, coloquei silicone quatro vezes, e isso para mim foi tudo. Foi uma forma de adequar meu sexo genético ao psicológico, de melhorar minha auto-estima e de me reconhecer como mulher. Hoje tenho um corpo que, para mim, é natural, mas é complicado. Muitas já morreram na hora da aplicação, mas a gente não pensa nisso na hora, porque vai realizar um sonho. Tento não pensar muito nisso. Minha única preocupação é o prazo de validade.
O longa tem o mérito de desmistificar a figura dos transexuais como figuras noturnas. Eles são mostrados sob a luz do dia, em seu cotidiano, dentro de suas próprias casas, com seus maridos - sim, a maioria tem companheiros - e mesmo eles também deixam sua intimidade à mostra frente às câmeras.
- No campo da sexualidade, o travesti está na última categoria, ficando à margem da margem. E o que a mídia geralmente mostra é o barraco no meio da rua ou pegando cliente. O filme mostra uma coisa totalmente diferente, colocando bem detalhado como é o dia-a-dia, o culto ao corpo... - explica Andrezza.
O documentário recorre à linguagem que consagrou o cineasta Eduardo Coutinho, com os personagens dialogando com o entrevistador em seus ambientes cotidianos, com a câmera ligada e imagens cruas. Luiz Carlos de Alencar, assim como Coutinho, deixa seus entrevistados falarem e, a partir dos relatos, constrói uma narrativa que, por vezes, parece um pouco desgastada, mas que não diminui em nada o mérito do filme.
- Eduardo Coutinho tem uma influência muito grande sobre o Fernando Oliveira, montador do filme, que é o responsável pela linguagem de "Bombadeira" - conta Alencar.
Dessa forma fluem relatos interessantíssimos, sem sentimentalismo nem apelação, mas com muita emoção, como o depoimento tocante de Emanuel, "marido" do travesti Michelle, que morreu durante as filmagens do documentário.
Mas o ápice do filme é mesmo uma sessão de "bombação", como os travestis chamam a aplicação do silicone. De forma crua, o espectador acompanha passo-a-passo o sofrimento - a tal "dor da beleza", do subtítulo do filme - causado pelas agulhas e pelo líquido viscoso que se integra à carne.
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- Tentei colocar as imagens da forma mais contemplativa possível, com a imagem crua. Não queria glamurizar aquilo. Nas exibições que fizemos, a recepção é bem diferente entre as pessoas. Enquanto os travestis vêem aquilo e começam a comentar com quem está do lado para contar suas experiências, quem nunca viu aquilo fica consternado - fala o diretor.
O filme foi exibido em algumas sessões fechadas - a última foi na última segunda-feira no Teatro Rival, no Rio - e aguarda a entrada no circuito de festivais do segundo semestre deste ano. Com o apoio da Petrobras, 1.300 cópias do documentário em DVD serão distribuídas gratuitamente para o Ministério da Saúde, bibliotecas, escolas e universidades públicas, além de contar com exibições em ONGs e postos de saúde.
- Acredito muito no potencial de formação e informação do filme - conclui.